domingo, 4 de dezembro de 2011

HISTÓRIA EM VERSO E REVERSO.

A literatura de cordel enriquece o ensino da História ao trazer para as salas de aula representações diferentes das que estão nos livros didáticos

Maria Ângela de Faria Grillo
13/9/2007
Maria Ângela de Faria Grillo é doutora em História com a tese “A Arte do Povo: histórias na literatura do cordel (1900/1940)” e professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

O Nordeste do Brasil é terra de cantadores, repentistas, poetas de cordel, contadores de histórias – grandes narradores que formaram um rico fabulário de contos, poemas, histórias de vida comum a todos, histórias de heróis e histórias de trabalho. Mas o grande narrador local da vida nordestina é o poeta de cordel, que desde o fim do século XIX percorria o sertão de feira em feira, de mercado em mercado, cantando seus versos e vendendo seus folhetos.

Impressos em papel pardo, medindo cerca de 12x18 centímetros, com 8, 16 ou 32 páginas e ilustrados com xilogravuras, os folhetos servem de suporte material para a chamada “literatura popular em verso” encontrada no Nordeste brasileiro e também conhecida por “literatura de cordel”, por ficarem expostos à venda pendurados em barbantes ou cordas, presos com pregadores de roupa. Este tipo de literatura ocupa um espaço de criação que

deve ser percebido em seus vários níveis: o simbólico, o artístico, o linguístico, o social, o político, o econômico e, especialmente, o histórico. Desde que surgiu no Nordeste do

Brasil, em meados do século XIX, independente do sistema literário institucionalizado, vem testemunhando fatos históricos e revelando a preocupação dos poetas, leitores e ouvintes com o mundo ao seu redor.       

A literatura de cordel foi muitas vezes acusada de reproduzir valores tradicionais e conservadores, tendendo a assimilar o discurso das instituições oficiais, sendo incapaz de gerar ou criar seus próprios significados simbólicos. Mas uma leitura mais cuidadosa da poesia de cordel revela uma grande quantidade de personagens estradeiros, astutos, trapaceiros – verdadeiros anti-heróis que sobrevivem de expedientes e artimanhas, que lhes valem como alternativa para escapar do sistema opressor e que reviram o mundo com humor. São personagens famosos como João Grilo, Pedro Malasartes, João Leso e Cancão de Fogo.  

Inúmeros são os eventos do século XX contidos nos folhetos que relatam o cotidiano da nossa História e nos quais são dadas representações diversas das contidas nos livros didáticos. Estes folhetos, além de relatarem fatos sociais, políticos, econômicos, como inundações, secas, casamentos, vitórias eleitorais, adoção de novas leis, vida e morte de políticos, servem também para suprir a escassa circulação de jornais no sertão. Ao mesmo tempo em que representam uma forma de literatura, informam sobre os acontecimentos da época. Neste sentido, o folheto de cordel se transforma numa rica fonte de pesquisa para a História, a Sociologia, a Antropologia e a Literatura.

Apesar de escrita e impressa, essa literatura carrega consigo procedimentos típicos das narrativas orais, que asseguram a compreensão, a memorização e a divulgação do texto. Em uma comunidade marcada por uma forte presença da oralidade, um texto jornalístico em prosa não tinha a mesma aceitação e, conseqüentemente, a mesma penetração de um texto em versos, marcados pela rima.

Ao recontar fatos apresentados nos jornais, os cordelistas adéquam essas notícias ao universo de valores e crenças de seu público, fazendo coincidir – ou, pelo menos, aproximando – o ponto de vista do texto com o de seu leitor. Fatos de natureza política ou econômica geralmente são apresentados de modo a enfatizar sua repercussão sobre as camadas populares – os trabalhadores rurais, vendedores, empregados do comércio, isto é, a parte mais significativa do público de cordel. É difícil precisar a exata origem social do cordelista, ou sua posterior inserção cultural e política, que muitas vezes lhe garante certo prestígio social. Mas o diálogo e a influência recíproca entre o poeta e o seu público são intensos, garantindo que o cordel seja como uma janela aberta para se investigar outras visões e outras versões das narrativas históricas.

É tarefa de o historiador analisar os fatos históricos, não somente a partir das versões oficiais, da fala dos políticos e de jornais tendenciosos, mas também através das representações feitas pelos poetas de cordel, representantes do povo que, por intermédio de seus folhetos, mostram outras visões de momentos históricos vivenciados e testemunhados por eles. Por isso o cordel é um rico material de estudo histórico-social, significativo para avaliarmos diferentes versões que circulavam em diferentes meios sociais, e que permite que sejam resgatadas as atitudes críticas entre os chamados setores populares.

A literatura de cordel pode ser trazida para a sala de aula como uma linguagem alternativa para o estudo da História. Ao relatarem os acontecimentos de um determinado lugar num determinado período, os folhetos se transformam em memória, em registro e – por que não? – em documento.

Um tema recorrente na literatura de cordel é o cangaço, forte traço da cultura sertaneja nordestina. As representações sobre os cangaceiros diferem das encontradas nos livros didáticos ou na literatura oficial. Quase sempre tratados como bandidos nestes espaços, os cangaceiros dos cordéis são, pelo menos, mais contraditórios: podem ser assassinos e ter sentimentos de amor; podem roubar, mas ao mesmo tempo ajudar os necessitados. Esse é o caso de A História de Antônio Silvino, de Francisco das Chagas Baptista (1882-1930), escrita na primeira pessoa, na qual o cangaceiro Antônio Silvino é cantado como um justiceiro:

“Uns quatrocentos mil-réis / Com os pobres distribuí / Não serve isto para minh’alma / Porque esta eu já perdi, / Mas serve pros miseráveis / Que estavam nus e eu vesti.”

Em O interrogatório de Antônio Silvino, o mesmo autor apresenta este cangaceiro como um protetor dos pobres que, apesar de se reconhecer como quem já perdeu a sua alma, pode ser perdoado, pois o fruto de seus roubos, praticados contra os grandes fazendeiros, era distribuído entre os mais necessitados. Além disso, ainda amparava as moças desprotegidas.

“Tomei dinheiro dos ricos / e aos pobres entreguei /protegi sempre a família / moças pobres amparei; / o bem que fiz apagou / os crimes que pratiquei.”
Alguns folhetos criticam abertamente as notícias e informações veiculadas pela imprensa, como se verifica em As novas lutas de Antônio Silvino, no qual Chagas Baptista afirma claramente a falta de veracidade de notícias publicadas nos jornais:

“Foi no lugar S. Mamende / Que esse encontro se deu / Alguns jornais afirmaram /                                               Que o meu grupo correu... /  Foi um erro, vou aos leitores / Contar o que aconteceu.”

Aí se percebe que o poeta, para denunciar essas inverdades, dá a Antônio Silvino o estatuto de um narrador em primeira pessoa, e este, mesmo se assumindo como um fora-da- lei, um perseguido pela polícia, coloca seus companheiros na posição de heróis valentes e, por isso, jamais correriam do perigo.

Outro cangaceiro muito cantado na poesia de folhetos é Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. O poeta Chagas Batista, em seu folheto Os decretos de Lampião, conta que, quando Silvino foi preso, Lampião passou a governar pelas armas o sertão nordestino, estabelecendo decretos, como podemos verificar a seguir:

“Diz o primeiro decreto / No seu artigo primeiro: / - Todo e qualquer sertanejo, / Negociante ou fazendeiro, / Agricultor ou matuto / Tem que pagar tributo / Que se deve ao cangaceiro. //  No parágrafo primeiro / Desse artigo ele restringe / A lei somente aos ricos / Dizendo: – a lei não atinge / Ao pobre aventureiro / Pois que não possui dinheiro / Diz que não tem e não finge.”

Mais uma vez, apesar de se colocar como uma figura autoritária, também este cangaceiro poderia ser representado como uma pessoa que não sacrificava os pobres, uma vez que estes eram isentos de pagar os tributos.

Um pouco diferente de Lampião, Maria Bonita não foi poupada no cordel do poeta João Martins de Athayde (1880-1959). Em Maria Bonita: a mulher no cangaço, a companheira do cangaceiro foi apresentada como uma mulher sanguinária e cruel:

“Esta mulher assassina / Que até rifle maneja / Não era por amizade / Que ela o bando ocupava / Seu instinto era malvado/ Seu amor degenerado / Só luto e dor espalhava.”

Entretanto, na poesia A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita, de Pereira Sobrinho (1918-?), a imagem da cangaceira é recuperada, tornando-se doce e meiga, capaz de arrebatar o coração do homem mais valente de sua época:

“Lampião era de aço / Porém diante a beleza / ela mulher mimosa / Com um porte de princesa / Cabelos e olhos grandes / Parecendo uma duquesa / Morena cor de canela / Dessas que o vento palpita / Muito bem-feita de corpo / Lábios da cor de uma fita / Disse Lampião: – Te levo / Minha ‘Maria Bonita’.”

Percebe-se nos versos de Sobrinho que a beleza e a doçura de Maria Bonita podiam ser vistas como tão irresistíveis que Lampião se apaixonou por ela imediatamente.  Os ouvintes e leitores desses versos talvez pudessem ter alguma simpatia pelo “herói amoroso”. O reconhecimento da capacidade de amar de Lampião o tornava uma pessoa digna de ser amada.

Assim, os folhetos trazem com freqüência representações de características contraditórias de seus protagonistas. Ao mesmo tempo em que são apresentados como fora-da-lei, podem estar lutando contra as injustiças, adquirindo características nobres, mesmo que não se comportem como os heróis mais tradicionais, como aqueles que só praticam o bem. A história se afasta do maniqueísmo e mostra que ainda mais variada e polissêmica, embora sempre violenta, deve ter sido a realidade do cangaço.

Abraços “CORDELADOS”

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